Saí à rua durante a maior festa de Lisboa, o Santo António, para entrevistar pessoas e explorar o sotaque lisboeta.
TRANSCRIÇÃO
Se perguntarmos a um madeirense, um transmontano ou a uma tripeira se eles acham que têm sotaque, eles não só respondem que sim, têm sotaque, como até têm um certo orgulho no seu sotaque.
No entanto, aqui em Lisboa, é comum as pessoas acharem que não têm sotaque ou que falam o “português neutro”.
Estamos em pleno Santo António, a maior festa de Lisboa, e como tal é a ocasião ideal para falar sobre o sotaque lisboeta!
Vou explicar porque é que os lisboetas acham que não têm sotaque, vou falar sobre algumas das características mais evidentes do sotaque de Lisboa, e vou aproveitar o ambiente de festa que se vive na cidade para entrevistar alguns lisboetas!
Eu queria perguntar-lhe uma coisa: acha que nós lisboetas temos sotaque? Temos um sotaque muito forte, um sotaque neutro?
Um sotaque neutro. Sim, não temos aquele sotaque não muito carregado do açoreano, não temos aquele sotaque das pessoas do Norte… Temos ali aquele sotaque mais neutro.
Eu acho que é neutro, acho que percebe-se muito bem…
Assim a comparar…
Comparado com o Norte e com os Alentejanos…
Somos mais neutros…
Acho que sim.
Achas que é muito forte, que é um sotaque neutro?
Eu acho que está tão enraizado em mim, que não consigo fazer uma apreciação… Normalmente eu noto mais diferença é quando eu vou a outros sítios onde têm outro sotaque.
Como pudemos ver, muitos lisboetas acham que não têm sotaque ou que o seu sotaque é o mais neutro. Mas porque é que será?
Antes de mais nada, toda a gente tem sotaque. Um sotaque não é mais do que o conjunto de características fonéticas da forma de falar de um determinado sítio, e normalmente os sotaques até variam de forma contínua e gradual ao longo de uma área geográfica.
Ou seja, os sotaques algarvios têm muito em comum com os do Alentejo, que no norte do Alentejo já vão sendo mais parecidos aos de Lisboa e Vale do Tejo. Depois vamos subindo e os sotaques do Centro e da Beira têm umas características semelhantes ao de Lisboa e outras semelhantes aos sotaques do Norte, e depois os do Norte também vão variando entre si até que chegamos à fronteira com a Galiza, em que existe muita semelhança fonética entre o galego e o português falados na fronteira.
Isto acontece porque uma língua se desenvolve de forma natural, ao longo de séculos de pessoas de uma mesma zona a falarem entre si. Foi assim que o latim que se falava em Portugal no tempo dos romanos se transformou gradualmente no português que conhecemos hoje.
Embora as línguas e sotaques regionais se desenvolvam de forma orgânica, estão sempre associadas ao poder político e económico. Por exemplo, embora o latim fosse falado em todo o Império Romano, só o latim falado pelas elites na capital, Roma, é que era considerado o “correto”.
Pois bem, Lisboa é a capital de Portugal desde 1255, e desde então que tem sido o centro político e económico do país. Ao longo dos séculos a corte e as elites sempre viveram aqui, e como tal a forma de falar dessas elites sempre foi vista como “correta”.
Quem é que vai dizer ao Rei de Portugal que o português dele é errado? Eu é que não me atrevia!
Para além desta concentração de poder político e económico ao longo da História, nos últimos séculos Lisboa tornou-se também o centro dos meios de comunicação em Portugal: toda a indústria do cinema, televisão e rádio está em Lisboa.
Isto significa que, se ligarmos a televisão ou a rádio, vamos quase sempre ouvir atores, jornalistas e apresentadores a falar com sotaque lisboeta, ou pelo menos com uma versão mais “neutra e trabalhada” desse sotaque.
Como tal, em Lisboa o sotaque com que crescemos é muito parecido àquele que ouvimos na televisão ou na rádio, o que faz com que criemos esta ideia de que falamos o português “oficial”.
Ao ser o sotaque dos meios de comunicação principais, o sotaque lisboeta também é o sotaque mais difundido em todo o país, o que significa que acaba por ser um dos, senão o sotaque mais fácil de entender em quase todo o país porque toda a gente do país tem alguma relação com o sotaque de Lisboa por tê-lo ouvido tantas vezes na rádio e na televisão.
Isto, mais uma vez, reforça a ideia de que é um sotaque “neutro”, porque é aquele que a maior parte das pessoas em todo o país conhece e percebe sem grande dificuldade.
Por exemplo, quando eu vivi na Madeira nos meus 2 primeiros anos de faculdade, no início tinha mais dificuldade em entender os madeirenses do que eles a mim, precisamente porque eles já estavam habituados ao sotaque lisboeta, de o ouvirem na televisão e na rádio, e eu nunca tinha tido contacto com o sotaque madeirense.
Já percebemos porque é que muitos lisboetas acham que não têm sotaque ou que o seu sotaque é o sotaque português neutro. Mas quais são então as características deste sotaque?
Vamos começar com as vogais!
O português de Portugal é uma língua de ritmo acentual, ou stress-timed, em que pronunciamos as sílabas de forma mais rápida ou mais lenta, dependendo de se são átonas ou tónicas.
Isto significa que em todo o país temos tendência a fechar ou até omitir as vogais átonas das palavras. Um bom exemplo é a palavra “presidente”, em que omitimos o primeiro e último “e”, pronunciando “prsident”. Ou até o nome do nosso país em que “o” se pronuncia como um “u”, “Purtugal”, ou então o “o” e o “u” desaparecem e dizemos só “Prtgal”.
No entanto, em Lisboa, esta redução vocálica é um pouco mais pronunciada, sobretudo quando falamos rápido. Isto faz com que muitas vezes não pronunciemos algumas vogais que noutras partes do país se pronunciam, como o “i” de Filipe, que dizemos Flipe, ou o “i” da própria palavra Lisboa, que dizemos Lsboa.
Outras vezes, estes “i’s” átonos transformam-se em “e’s”, como na palavra “esquisito”, que nós dizemos “esquesito”.
O Filipe é muito esquisito.
O Filipe é esquisito.
Mas atenção! Ao contrário do que muitos não lisboetas pensam, Lisboa não fica Lesboa. Ou dizemos rápido Lsboa ou dizemos lento, com o i, Lisboa. Não venham cá com histórias de que dizemos Lesboa, porque isso não é verdade!
O nome da nossa cidade?
Lisboa.
Lisboa. Não diz Lesboa.
Não! É Lisboa!
Obrigado.
Lisboa.
Não diz Lesboa.
Lesboa não. Lisboa.
Dizem que os lisboetas dizem Lesboa.
Não… Lisboa.
Obrigado.
Lesboa…
Tu dizes Lesboa?
Não, eu digo Lisboa.
Em relação a ditongos, o ditongo “ou” é pronunciado como um “o” fechado, “ô”, em quase todo Portugal, exceto no Norte. Tanto o apelido Couto como a palavra “coto” se pronunciam “coto”.
No entanto, em Lisboa às vezes levamos isto um pouco longe demais e transformamos o ditongo “ou” em “ó”, sobretudo quando falamos rápido. Em vez de dizermos “ouriço” ou “ourives” dizemos “óriço” ou “órives”.
Também o ditongo “au” sofre muitas vezes esta transformação quando falamos rápido. Dizemos “restórante” e “ótomóvel” em vez de “restaurante” e “automóvel”.
Isto faz com que a pergunta “Vamos ao restaurante de autocarro ou de automóvel?”, se transforme em:
“Vamos ó restórante d’ótocarro ó d’ótomóvel?”
Vamos ó restórante d’ótocarro ó d’ótomóvel? (3x)
D’ótocarro ó d’ótomóvel?
Venho de autocarro ou de carro.
Mas tem que dizer aquela palavra…
Tinha que ser rápido, eu digo já: Como é que é? Vamos de bus ou carro?
Isso é calão!
Sim. Sim…
Não, não. Ele quer que diga rápido.
Vamos d’ótocarro ó d’ótomóvel?
Vamos d’ótomóvel
Em relação às consoantes, o traço mais característico do sotaque de Lisboa é talvez a forma como transformamos o som “sc” em “ch”. Em vez de dizermos “piscina”, “crescimento” ou “disciplina” dizemos “pchina”, “crchimento” e “dchiplina”.
“Crchimento”, “dchiplina” e “pchina”.
Eu crechi com muita dchiplina.
Eu crechi com muita disciplina.
Ah… tu não falas assim.
Não, claro que não… Com muito dchiplina.
Exatamente.
Eu cresci com muita ordem.
Mas eu preciso da palavra disciplina.
Aldrabona!
Eu crechi com muita dchiplina!
Finalmente, para acabar, não podiam faltar palavras e expressões típicas de Lisboa.
Aqui mais uma vez, somos “vítimas” da projeção que Lisboa tem no resto do país através dos meios de comunicação. É difícil saber se certas expressões que usamos aqui em Lisboa são locais ou nacionais, porque a maior parte das expressões lisboetas acabam por ser conhecidas em todo o país.
No entanto, existem expressões que sabemos que nasceram aqui porque fazem referência a partes específicas da cidade: “Meter o Rossio na Betesga“, “Resvés Campo de Ourique” e “Caiu o Carmo e a Trindade”.
Normalmente dizemos que alguém está a tentar meter o Rossio na rua da Betesga quando essa pessoa está a tentar fazer alguma coisa que é impossível, tal como seria impossível meter o Rossio na rua da Betesga.
Porque a Betesga é uma rua muito estreitinha, bla bla bla,… E o Rossio é muito grande
Resvés Campo de Ourique é uma expressão que se usa para dizer que nos safámos de algo por muito pouco, “por um triz”.
Esta expressão tem origem no terramoto de Lisboa de 1755, terramoto esse que basicamente destruiu toda a Baixa lisboeta e que chegou muito perto ao bairro de Campo de Ourique. Esta zona escapou à destruição por muito pouco, e como tal dizemos que quando escapamos de algo por muito pouco, foi “resvés Campo de Ourique”.
Há uma de Campo de Ourique!
É! rrrrrrrrr
Estou-me a lembrar, espera! Resvés Campo de Ourique, porque aquilo é tudo bué apertado.
Exatamente.
É como eu…
Resvés Campo de Ourique. Sabes o que quer dizer?
Sim, quer dizer, não sei bem a história.
Não, mas só como usarias.
É pertinho, à míngua.
À justa.
Finalmente, a expressão “Cair o Carmo e a Trindade” também tem a sua origem com o terramoto. Os conventos do Carmo e da Trindade eram dois dos mais importantes conventos do Bairro Alto de Lisboa e ambos ruíram durante o terramoto.
Hoje em dia ainda é possível visitar as ruínas do Convento do Carmo!
Caiu o Carmo e a Trindade.
Também conhece?
Também.
Também tem a ver com o terramoto.
Exato. Caiu o Carmo e a Trindade que foram conventos que caíram no terramoto.
Dizemos que cai o Carmo e a Trindade quando alguma coisa tem graves consequências ou causa muito espanto.
Muitas vezes esta expressão usa-se ironicamente, quando uma pessoa reage de forma excessiva a alguma coisa sem importância.
Ela reagiu como se tivesse caído o Carmo e a Trindade e afinal não era nada.