A minha amiga Camila é brasileira, mas aos 7 anos mudou-se para Portugal, onde cresceu. Hoje ela partilha como foi crescer em Portugal sendo brasileira, e como é falar na perfeição estas 2 versões da língua portuguesa.
TRANSCRIÇÃO:
Olá a todos e bem-vindos de volta ao Portuguese With Leo.
Hoje temos um vídeo muito especial porque tenho aqui a minha amiga Camila.
Hello.
Que é do...
Brasil.
Brasil. No entanto, quando nós falamos um com o outro, tu falas com esse teu sotaque...
Bem português.
Bem português. E é precisamente isso que vamos ver no vídeo de hoje. A Camila fala na perfeição o português de Portugal e o português do Brasil, porque nasceste no Brasil mas cresceste em Portugal, e hoje vamos ver então do ponto de vista linguístico, do ponto de vista dos sotaques, das palavras, da forma de pensar até, como é que é crescer com estas duas versões da língua.
Eu tenho uma história muito engraçada porque eu e a Camila somos colegas do turismo, ambos somos guias turísticos. Quando nós éramos colegas no turismo, nós tínhamos outro colega que era brasileiro, que é brasileiro, o Eduardo, e eu reparei que a Camila estava a falar com sotaque brasileiro com o Eduardo, e uma coisa que é muito comum cá em Portugal, uma vez que o nosso português é muitas vezes difícil de perceber para os brasileiros que nunca tiveram contacto com esta variedade do português, muitos portugueses adaptam o seu sotaque, quando falam com brasileiros para que eles os percebam melhor.
Mas o Eduardo já vivia cá há anos e não precisava desse tipo de adaptação. Se eu falar com o meu sotaque, o Eduardo percebe. E então eu disse à Camila, porque eu achava que a Camila era portuguesa, "Camila, não é preciso falares com sotaque brasileiro porque o Eduardo percebe, podes falar com o teu sotaque normal". Ao que a Camila diz: "Não, mas eu sou brasileira", e diz com sotaque português: "Mas eu sou brasileira", e eu: "O quê? Estás a gozar? Não és brasileira".
E pronto, e ao que parece, a Camila é mesmo brasileira.
Sim. Se eu ouço uma pessoa que fala português de Portugal, imediatamente eu falo português de Portugal, mas se eu ouço que a pessoa é brasileira é-me super desconfortável falar com sotaque português, quer dizer, pode não fazer sentido para algumas pessoas porque é no fundo a mesma língua, mas é tão diferente, quer dizer, a pessoa fica diferente. Já me disseram: "Não, tu pareces muito mais doce quando falas português do Brasil".
E eu tenho o meu sotaque da minha zona de onde eu nasci, de onde a minha família é, então, isso tudo já tem, tipo, a língua tem muito uma conotação, não é? Tem muito um quentinho que vem, tem um acolhimento específico, mas eu sempre passei muito por isso, tipo: "O quê? Tu não és nada brasileira!". Mas sim, sou.
Quem te ouve falar não acha que sejas brasileira.
Sim. Então, eu vim para Portugal quando tinha sete anos. Porquê? Porque, isto foi em 2001, na altura a minha família, o Brasil estava numa crise económica, eu sou de Salvador, da Bahia, um estado muito grande, muito lindo e maravilhoso no nordeste do Brasil. Não é uma zona economicamente muito forte do país, a minha mãe é programadora, o meu pai trabalhava, tinha uma empresa com a família, as coisas não correram muito bem, ele ficou ali numa altura assim um bocadinho perdido de trabalho e havia uma grande demanda de pessoas que fossem programadores para códigos de banco que é o que a minha mãe faz.
Ela tinha uma prima que veio para Portugal, se não me engano, nos anos oitenta, fazer um mestrado. Estava farta do Brasil, foi para o Porto, casou-se com um português, ficou e disse: "Pá, venham, tudo funciona, saúde pública, educação pública", e viemos.
Venham para Portugal. Ok, agora, os brasileiros que nos estiverem a ver estão a perguntar-se "Hmm... ela não soa muito brasileira".
Sou sim, eu falo os dois gente, falo tudo certinho.
Pronto, aí está, obrigado.
De nada.
Precisávamos que provasses que és brasileira.
Provei já, bem baiana também.
Bem baiana? Pronto. Depois talvez façamos um vídeo no futuro só a focar-nos no sotaque do Nordeste.
Nossa, e tem vários!
Há muitos imigrantes que vêm e ficam em zonas com muitos imigrantes, não foi o nosso caso. Nós ficámos em Lisboa. Então eu estudava em escolas que, na altura, eram... pelo menos a minha primária era 99%... eu não me lembro de um aluno ser imigrante na minha escola. Então, era só o que nós, era só, pronto, era o que nós tínhamos. Não havia nenhum outro colega brasileiro, portanto, só ouvíamos português.
Havia muito uma diferença na minha família de, em casa, Brasil; saímos de casa, muito, muito Portugal. Chegou lá uma fase em que era uma mistureba absurda que os meus pais não percebiam nada e os portugueses falam muito rápido, nós enrolamos muito, não dizemos as últimas sílabas. Os brasileiros é tudo muito mais mastigado.
Então, pá, eu lembro-me de, depois, eu e a minha irmã, a minha irmã tem mais três anos que eu e nós, tipo às turras e vinha o português de Portugal e, olha, chegou uma fase em que a minha mãe: "Olha, meninas, vamos-nos entender. Comigo, vamos tentar mais devagar, português do Brasil, mais devagar".
Pá, e depois nós íamos todos os Verões, passávamos lá. Então voltávamos, era tipo português do Brasil, português do Brasil. Depois, vínhamos já era mistura de português de Portugal, então, realmente ficou muito overwhelming e chegou uma fase em que foi, tipo: "Ok, bora tentar separar as coisas".
Uma pergunta, tu com a tua irmã falas como?
Então, engraçado, português de Portugal. Maioritariamente.
Porque vocês cresceram num ambiente se calhar... social português, as duas, não é?
Sim, porque nós, quer dizer, tu passas muito tempo na rua, não é? Quando és miúdo, na rua, na escola, é onde passas a maioria do teu dia. Se bem que a minha família sempre teve muito aquela cultura latina de, ao final do dia toda a gente janta na mesa e conversa. Ou seja, todos os dias da minha vida eu tinha, eu falava as duas línguas, os dois idiomas, digamos, na mesma língua.
As duas versões da mesma língua.
Sim. Então, depois, eu não me lembro sinceramente em que ponto é que a chavinha virou e eu era capaz de misturar, de distinguir.
Como se fossem duas coisas separadas.
Separadas, mas eu lembro-me de ser muito assim, quando vínhamos do verão, ou seja, ficávamos de junho até final de agosto no Brasil, vínhamos e era logo, parecia que era tipo, oh pá, outra vez uma fase de adaptação, tipo, e é cansativo também.
E agora já não acontece isso?
Não, é assim, acontece de, eu estou com muito mais sotaque da minha cidade quando venho, mas eu não tenho dificuldade nenhuma em.. tenho assim, por exemplo eu passei quatro meses no Brasil agora, no início do ano, então, troco muito o "me".
Sim, mas isso...
E há coisas que, é tipo, eu cresci aqui, por exemplo, aprendi a conduzir aqui. Eu nunca digo "travão". É "freio". É "freio" e é "freio de mão", "freio de mão". Eh pá, não me perguntes porquê porque eu aprendi a conduzir aqui.
Estranho, ya, ya.
Eu não... não me sai.
Mesmo assim usas "freio".
"Freio de mão". Pá, uma das coisas... hoje em dia tem muita piada, mas na altura era super frustrante de... sítio no Brasil é uma quinta, tipo, uma fazenda, uma quinta, é campo. Eu tenho uma quinta, eu tenho um sítio.
A sério?
Ya, e eu lembro-me de, e eu sempre fui muito sociável, de, gostava de brincar, de fazer desporto e não sei quê e dos miúdos: "Ah, tu falas esquisito, de onde é que és, de que sítio é que tu vives?".
E eu "Ah, eu não moro em sítio."
"Não, em que sítio é que vives?"
E eu: "Gente, eu não moro em sítio, eu moro, tipo, numa cidade, em Lisboa".
Sabes, e tipo, na altura era tão frustrante porque eu ficava bué tipo: "Eu não percebo porque é que eles não me entendem!" Porque, tipo, na minha cabeça era, tipo, é isto, quer dizer. Sítio é campo. E eu tipo: "Não, please!".
Tu aprendeste o sotaque lisboeta de propósito? Houve algum esforço da tua parte ou foi completamente.. absorveste sem querer?
Era o que eu ouvia. Eu nunca poderia falar à Porto, não é? Quer dizer, se eu estou em Lisboa e se é isso que eu ouço. Eu lembro-me porque a minha tia era casada com um açoriano, e eu lembro-me que eu já tinha dificuldade com o português de Portugal, o facto de ele ser açoriano e nós passarmos as primeiras... quando chegámos em casa deles, pá e eu via-me grega, tipo, não percebia nada nada nada, nada nada. E era uma aflição aquela coisa do "Hã? Hã?".
Pois, uma pessoa às tantas não quer, sente-se mal de voltar a perguntar.
Sim, sim, sim. Mas então, o sotaque de Lisboa sempre foi o que eu ouvi, portanto é o que eu falo, é o que me sai.
Eu acho que eu passei durante uma fase em que eu queria que não fosse tão óbvio que eu era diferente, que eu era de outro sítio e eu encarnei muito isso. Tanto que a minha mãe me ligava e falávamos, e eu propositadamente falava português de Portugal porque tinha pessoas à minha volta e não queria que ninguém percebesse, e ela dizia às vezes tipo: "Ai, não... fala como deve ser, não estou a perceber".
E eu ficava tipo "Mãe, tem tanta gente aí".
Ah pá, já me aconteceu, por exemplo, de eu estar no metro, estarem a falar mal de brasileiros e eu, tipo: "Vou fazer de propósito!"
E então?
"Alô!" E as pessoas tipo...
Eu acho que quanto mais velha eu fico, mais à vontade eu estou com as várias versões de mim. Eu acho que quando era mais nova havia uma necessidade maior de, "eu sou isto", ou "eu sou aquilo" e eu estou com brasileiros, eu falo português do Brasil. Agora eu já estou mais confortável em, pronto, as duas fazem parte do package, portanto, as duas estão aqui.
A imigração é um processo muito traumático para qualquer... não é um assunto que é muito falado. Mas eu acho que a imigração é um processo muito traumático para qualquer família.
Digam nos comentários se querem que num vídeo futuro exploremos mais esta questão da imigração, e se calhar do ponto de vista de uma imigrante do Brasil, mas que não imigrou como adulta mas sim como criança, portanto viu, cresceu, conseguiste crescer em Portugal. Se quiserem um vídeo mais focado nessa parte, digam nos comentários e voltamos a ter a Camila aqui. Mas vamos voltar à parte da língua, que é o foco de hoje.
Sim. Uma das coisas que eu ficava... Pá, das primeiras situações de enlouquecer foi, ir à Staples comprar material escolar. Porque eu vim, eu cheguei em maio e em setembro comecei o segundo ano, eu saí do primeiro, já fui logo para o segundo. E a minha irmã saiu da escola para o quinto ano então eu fiquei, tipo, sozinha...
Mas lá fomos as duas à Staples que era lá no cu de Judas para comprar... Pá, e tínhamos a lista do material escolar, tipo, três horas para encontrar uma cena. A minha mãe: "Que porra é afia?!, que porra é afia?!". É lapiseira gente.
Não, o afia é para afiar.
É, mas lá, na Bahia é lapiseira. Lapiseira é para afiar. Tipo...
Aqui a lapiseira.
Eu sei, lapiseira é...
Mas é para eles, isto é para eles, que nos estão a ouvir.
É esferográfica?
Não, lapiseira é tipo a caneta com bico de lápis.
Exatamente, isso.
Com bico de carvão. Com ponta... que tu trocas, que são as minas.
Eu sei, lá tem outro nome.
Pronto, pois.
Também acho que é lapiseira, se eu não estou louca. Já não me lembro, já não me lembro. Pá, depois, a pastilha elástica era...
Como é que vocês dizem?
Chiclete. Demorei anos. O autoclismo foi uma palavra tão difícil para mim.
Vocês não dizem autoclismo?
É puxar descarga. Puxa, descarga, muito mais fácil. Autoclismo! Fogo!
Puxar o autoclismo, é verdade.
É muito complexo.
É, é diferente. Puxar a descarga.
Olha, duas palavras proibidas: "durex" e "bico". Porque no Brasil "bico" é, tipo, é tipo, como é que se diz aqui?
É tipo um trabalho temporário.
Mas há uma palavra muito tuga.
Pois há.
É uma palavra tão boa.
É um biscate!
Biscate! O bico, que no Brasil é um inocente biscate. Porém, aqui, é um sexo oralzinho.
Exatamente.
Inocente também.
Portanto, não vamos dizer "bico".
Nunca, pá, eu lembro-me, a minha, uma tia minha veio para cá viver assim miúda, ficar aqui um ano, e queria fazer cá a faculdade e foi para as aulas, apresentou-se e disse: "Ah e tal, lá no Brasil eu estudava, eu fazia uns bicos de vez em quando para ganhar um dinheirinho".
A turma congela, e o professor diz "Oh Taís, não, pronto, aqui em Portugal isso quer dizer outra coisa", e ela tipo, mega distraída "Hã? Como assim, tipo o quê?".
Ele "Não, depois eu explico". Depois, tipo, chamou-a e ela "Professor, pelo amor de Deus, professor. Eu não quis dizer isso". Ele "não, eu sei, está tudo bem, só para tipo, no futuro saberes".
Pá, e ela que atrapalhava "queque" e "queca". O "queque" é um bolinho, um bolinho pequeno, tem aqui um bolinho de ovos normal.
É assim, um quequezinho, ya.
E uma "queca", é uma foda.
Exatamente.
Aí, porra, uma letra muda tudo, né? E ela, eu lembro-me que ela também, ela era assim, ela era bué de distraída, então ela era, tipo, ela apanhou as piores. "Ah, você me dá uma queca, por favor?". "Querida, não, aqui não vende queca". Que horror!
Não, mas tipo.. Gente, "ao fio, ao cabo", oi?
"Ao fim e ao cabo", vocês não usam?
Oi? Essa para mim, "Que fio, querido?".
Não! "Ao fim e ao cabo".
"Whatever".
É "ao fim".
Não, eu vivo aqui, é a minha casa, mas se há coisa que eu não digo é isso "ao fim e ao cabo", não.
Mas é "fim", não é "fio".
"No final de contas".
"No final de contas", também.
Fechamos em "final de contas" porque "ao fim e ao cabo"... Ai, não.
Porque "cabo" e "fim" é a mesma coisa.
E com esta chegamos ao fim do episódio porque, infelizmente, a minha câmara ficou sem memória e não deu para filmar mais. Até para a semana, e obrigado por terem assistido até ao fim.